quarta-feira, novembro 16, 2011

Confusão de Gerações

Me admiro com recorrência da capacidade de os velhos agirem como crianças: irresponsáveis, impressionáveis, ingênuos e futriqueiros.
Também me admiro, e cada vez mais percebo isto, da capacidade de os jovens agirem como velhos: ranzinzas, resmungões, impacientes, opiniáticos, críticos.
Maturidade e jovialidade deveriam ser virtudes buscadas por cada pessoa, independente da idade. O equilíbrio entre estas condições é imprescindível a alguém que seja admirado por seus pares. Agir como crianças irresponsáveis, que não assumem seu tempo, dinheiro e relacionamentos, é tão ridículo quanto passar a vida a lamentar o não-realizado, as impossibilidades.
Acredito mesmo que esses desequilíbrios são ainda mais perniciosos na minha profissão. O educador, por definição é um preceptor, um aio, um pedagogo. Ou seja, seu papel é o de conduzir os mais jovens ou os mais inexperientes no caminho do conhecimento, da cultura (no sentido do que é construído e acumulado pelos ancestrais), e das possibilidades. O mestre é o que descortina à vista do outro a realidade e o que ainda não é, de modo a despertar intenções e atitudes.
Um mestre “velho“ ou “moleque“ boicota os sonhos, inibe as realizações, interrompe a esperança. Fico a imaginar a mente dos pequenos (ou não tão pequenos assim, já adolescentes e jovens) ao chegarem à escola, cheios de energia e expectativa, mas ouvindo o tempo todo um professor (ou professora) que grita aos quatro ventos: "Não tenho esperança com relação a minha vida, estou frustrada" e ao mesmo tempo, com o dedo em riste: "Você não tem jeito, não vai dar nada, ninguém te aguenta!".
É simplificar por demais imaginar que melhores salários para os professores resolveriam esta situação. A luta pelo desenvolvimento da educação, por sua valorização, pela formação e aprimoramento dos professores é fundamental a uma nação, sem dúvida. Mas o problema do qual estou falando é muito mais profundo. Vivemos numa sociedade em que os jovens não acreditam que podem fazer alguma diferença e em que os velhos se tornam cínicos.

sábado, novembro 05, 2011

O direito de ler em voz alta

"Estranho desaparecimento, esse da leitura em voz alta. O que é que Dostoievski teria pensado disso? E Flaubert? Não se tem mais o direito de pôr as palavras na boca antes de enfiá-las na cabeça? Não há mais ouvidos? Nem música? Nem saliva? Nem gosto nas palavras? E além de tudo e ainda mais! Será que Flaubert não se pôs a gritar (até fazer explodir os tímpanos) seu Madame Bovary? Será que ele não está definitivamente mais bem equipado do que qualquer outro para saber que a inteligência do texto passa pelo som das palavras, lá onde se faz a fusão dos seus sentidos? Será que não é ele que sabe, como ninguém mais, ele que tanto brigou com a música intempestiva das sílabas, a tirania das cadências, que o sentido é algo que se pronuncia? O quê? Textos mudos para puros espíritos? A mim, Rabelais! A mim, Flaubert! Dostô! Kafka! Dickens!, a mim! Venham dar um sopro a nossos livros! Nossas palavras precisam de corpos! Nossos livros precisam de vida!
"É verdade que o silêncio do texto é confortável... não se arrisca a morte, como Dickens, a quem os médicos pediam que calasse enfim seus romances... o texto e cada um... todas essas palavras amordaçadas na amolecida cozinha de nossa inteligência... como pode se sentir alguém nesse silencioso tricotar de nossos comentários!... além disso, julgando o livro à parte, a sós, não se corre o risco de ser julgado por ele... é que,desde que a voz se mistura, o livro diz muito sobre seu leitor... o livro diz tudo.
"O homem que lê de viva voz se expõe totalmente. Se não sabe o que lê, ele é ignorante de suas palavras, é uma miséria, e isso se percebe. Se se recusa a habitar sua leitura, as palavras tornam-se letras mortas, e isso se sente. Se satura o texto com a sua presença, o autor se retrai, é um número de circo, e isso se vê. O homem que lê de viva voz se expõe totalmente aos olhos que o escutam.
"Se ele lê verdadeiramente, põe nisso todo seu saber, dominando seu prazer, se sua leitura é um ato de simpatia pelo auditório como pelo texto e seu autor, se consegue fazer entender a necessidade de escrever, acordando nossas mais obscuras necessidades de compreender, então os livros se abrem para ele e a multidão daqueles que se acreditavam excluídos da leitura vai se precipitar atrás dele."

Pennac, Daniel. Como um romance. RJ: Rocco, 1993.